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domingo, 29 de novembro de 2009

Caso de cremação

Seu Felisberto já estava com 89 anos e à beira da morte. A família já estava angustiada com o estado do velho, ”vai, não vai”, quando o moribundo começa a arfar, querendo dizer alguma coisa:

- Fale, vovô!

- Eu... eu... eu...

- Sim, vovô, fale!

- Quero... s... ser... cre... m... ma... do...

- Não fale isso, papai, o senhor vai viver muito ainda!

- Nã... nã... não...

E voltou a seu estado de quase morte. Quando o filho e a neta foram dar a notícia para os demais familiares, todos se levantaram apreensivos. Quando o filho disse que o pai pedira a cremação de seu corpo, a mãe quase caiu para trás, tamanho era seu espanto.

- Ele sempre foi muito vaidoso, por que isso agora?

- Não sabemos, mamãe. Também não entendi, mas essa é a vontade dele.

O pedido de cremação era incomum, pois Felisberto sempre se gabou do cuidado que tinha consigo mesmo. A mulher admirava-o por não fazer o tipo de machão viril, que não se cuida. Quando o conheceu, numa gafieira, ela viu aquele deus de branco que convidou-a para dançar. Quando notou que esse mesmo deus tinha um bom porte físico, cabelos bem penteados e bigode arrumado e bem aparado, acreditou ter encontrado sua alma gêmea. A convivência diária confirmava isso, com ela por vezes suspeitando da masculinidade dele tamanho era o cuidado que tinha. Por esses motivos era inconcebível imaginar a situação. Só de imaginá-la, a pobre senhora caiu em prantos, sendo amparada pelos filhos.

Os filhos eram outros que não acreditavam no pedido do pai. O cuidado com a aparência era herança deixada pelo pai. Tanto que, em demasia, um deles virou homossexual. Otávio, o mais velho, que recebeu a notícia do pai, era quem mais lembrava o pai na aparência e no cuidado. Era também o mais incrédulo dos três. Assim como a mãe custava a acreditar, ele tentava entender o porquê da situação. Miguel, o filho do meio, dava tanta importância aos ensinamentos do pai que trabalhava com estética masculina. João, o caçula homossexual, estava mais tranquilo que os outros. O que preocupou Otávio, que achava que ele tinha algo a ver com aquilo.

- Tenho tanto quanto você, Miguel ou mamãe. Por que essa caça às bruxas agora?

- Esse seu ar tranquilo deixa dúvidas. Acho que você tem algo a ver com isso.

Parecia que Otávio estava certo, mas João não dava o braço a torcer. Foi quando Miguel lembrou de uma conversa que o pai tivera com ele e João, quando eram adolescentes. Perguntando ao pai o porquê daquele cuidado todo, Miguel se lembrou que o pai disse que, “enquanto vivos, nós devemos levantar nossa autoestima ao máximo.” E quando João perguntou sobre a ocasião da morte, o pai dissera que “a beleza deveria acabar quando morremos. Uma vez mortos, já era todo o investimento que fazemos em nós.” Pelas palavras do pai, era previsível saber que ele queria ser cremado. Mas a mãe custava a acreditar naquilo, e ainda chorava mais.

Depois de alguns minutos, o médico saiu do quarto, comunicando o falecimento de Felisberto. A família inteira chorava diante do dilema causado pelo último pedido do morto, confirmado pelo médico. Em meio às lágrimas de todos, a mãe confirmou a realização da vontade dele.

No dia seguinte, no velório do corpo, Miguel e João conversavam sobre a antiga conversa do pai com eles. E se perguntavam, tentando entender o porquê do pai não deixar que brigassem fisicamente, que jogassem futebol ou qualquer outro esporte de contato físico (o que Miguel fazia escondido), ou se relacionassem com pessoas de outra cor de pele ou credo. Ouvindo a conversa, a mãe disse-lhes que o pai não gostava de tais coisas, mas que ela era contra, pois sabia que ele o fazia às escondidas. Ambos se sentiram perdoados, ainda que não pelo pai. Otávio apareceu nessa hora para avisar da cremação do corpo. O corpo bem cuidado, que se estragaria no forno.

Desse episódio, ficou a lição de que um dia todos vamos morrer. Se cuidar enquanto vivo é válido. O que não é, é viver em função disso. Com essa, arranquei algumas lágrimas na mesa do bar. Meu comparsas, para variar, afogaram as lágrimas na cerveja.
Quanto ao corpo, bem... segundo soube, as cinzas estão sobre a lareira, para lembrar a todos daquela família da lição deixada pelo pai.

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